Derek Chauvin, Edmundo e a Justiça que desejamos
Por Danilo Dias | 21 de junho de 2021

Derek Chauvin, Edmundo e a Justiça que desejamos

O caso do policial norte-americano, Derek Chauvin, ocorrido na cidade de Minneapolis, nos EUA, está fresco na memória de todos nós. Há exatos 11 meses (2020), Chauvin, em abordagem policial, manteve George Floyd imobilizado no chão com um dos joelhos sobre o seu pescoço. A manobra de imobilização asfixiou Floyd e o levou a óbito. O caso provocou uma justa onda de indignação e grandes protestos populares em diversas cidades do país.

Já o caso do jogador Edmundo, ocorrido na cidade do Rio Janeiro, no Brasil, ao contrário, perdeu-se nos desvãos do tempo e apagou-se da memória coletiva. Há 25 anos (1995), Edmundo, conduzindo seu veículo em alta velocidade, colidiu com outro automóvel e provocou a morte de três pessoas. Silêncio e resignação.

É certo que as situações relatadas são em tudo distintas: nos fatos, no tempo, no espaço e na resposta que cada país foi capaz de dar. No entanto, a proximidade do desfecho em um e outro caso chamou-me a atenção. No último dia 16, o Supremo Tribunal Federal declarou extinta a punibilidade do jogador Edmundo, após o caso tramitar por 23 anos na Justiça brasileira. Poucos dias depois (20/04), a Justiça norte-americana condenou Chauvin por homicídio culposo, cancelou a fiança e o policial saiu preso do julgamento. Isso, 11 meses após o fato ocorrido. Sim, ele ainda pode recorrer, muitos dirão. É verdade, mas, com toda certeza, o processo dele não morrerá pela prescrição. Alguém duvida disso?

Edmundo, por sua vez, foi condenado em primeira instância em 1999 a uma pena de 4 anos de reclusão em regime semiaberto. No mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou a apelação da defesa e manteve a pena imposta pelo juiz. Os fatos, portanto, já eram incontroversos.

Um caso sem nenhuma complexidade jurídica arrastou-se por mais de 20 anos nos tribunais superiores do país (STJ – só nessa Corte foram 5 recursos – e STF), até que a prescrição do crime se consumasse e os autos fossem encaminhados aos arquivos de nossas Cortes, ou seria melhor dizer ao cemitério de injustiças?

Infelizmente, esse caso não é exceção em nossa crônica judiciária.

Reconheço que não é fácil encontrar em qualquer sistema o ponto ótimo de equilíbrio que assegure o perfeito balanceamento entre as garantias do réu e a eficiência do aparato de persecução penal do Estado. Talvez essa busca seja sempre por resultados provisórios, que dependem de circunstâncias de tempo e de espaço. Como a própria natureza humana, nosso sistema penal é apenas suscetível à perfectibilidade, de modo que seu evoluir é constante e perene.

Disso resulta que não temos, em nenhuma civilização, um modelo perfeito, pronto e acabado a seguir. Podemos contar, na melhor hipótese, com os faróis dos que se encontram mais a frente e iluminam caminhos já percorridos.

Não desejo, portanto, cair no discurso fácil. Nem tudo que é bom para os EUA é bom para o Brasil, mas tampouco acredito que possamos nos dar ao luxo de rechaçar toda a experiência jurídica norte-americana com o rótulo de enlatado indigesto e punitivista. No contraste apresentado entre dois emblemáticos casos criminais parece difícil sustentar que o caminho da virtude esteja conosco.

Um sistema jurídico funcional deve garantir ao réu direito à ampla defesa. Ao acusado deve-se assegurar a possibilidade de apresentar sua versão dos fatos, de produzir provas, de contestar a versão da acusação, e também de recorrer de decisões desfavoráveis. O que não se pode é normalizar a possibilidade de estender a duração de um processo por mais de 20 anos e só encerrá-lo após lograr a extinção da punibilidade pela prescrição. Civilização não combina com impunidade, menos ainda com a impunidade seletiva. Só na barbárie é possível conviver com o direito de não ser punido mesmo que a culpa esteja devidamente comprovada. Isso é privilégio injustificado, desigualdade patente, injustiça, e não Estado de Direito.

No caso de Edmundo, essas duas décadas foram gastas apenas para discutir se a quantidade da pena aplicada era correta ou não. A defesa não negava os fatos nem a responsabilidade do jogador. O ministro Barroso, que votou contra a prescrição, esclareceu que a não se pretendia, com o recurso extraordinário, rediscutir a sua condenação, conforme fls. 93, mas apenas o quantum da pena privativa de liberdade fixada e a possibilidade de sua substituição por pena restritiva de direito.

E o pior: o recurso ao STF era manifestamente incabível.

A prescrição findou por ser reconhecida para atingir a pretensão executória da pena. Isso torna o caso ainda mais bizantino. O argumento não passa no teste mais elementar de lógica, embora encontre guarida em nossa jurisprudência.

Enquanto a defesa manejou recurso procrastinatório contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o Ministério Público, acertadamente, conformou-se com a decisão da Corte local. Para a acusação, o caso transitou em julgado. No entanto, de acordo com o entendimento do STF, a execução da pena só pode se dar após o trânsito em julgado para ambas as partes.

Assim, mesmo sem poder executar a pena, a prescrição da pretensão executória correu para o Ministério Público enquanto a defesa protelava indefinidamente o processo.

Punir um culpado, alguém que cometeu um crime, que violou regras essenciais de convivência social, após o devido processo legal exercido em tempo razoável, não é tara de punitivista perverso, é respeito à dignidade humana que se expressa no direito que todo cidadão tem de ver sua vida e liberdade asseguradas pelo Estado contra qualquer lesão ou ameaça de lesão.

Isso parece óbvio, evidente, mas nosso sistema jurídico é todo ele construído para que o óbvio não seja posto em prática. Nossa legislação, com regras de prescrição retroativa, com a possibilidade quase infindável de recursos, com processos que, na prática, só terminam pela vontade do réu, e tudo isso ainda potencializado pela interpretação leniente dos tribunais superiores sob o signo de um pseudogarantismo, obriga-nos a falar platitudes, a ser acaciano, porque por aqui o trivial parece ser sempre extraordinário e a lógica jurídica uma alquimia misteriosa e insondável para meros mortais.

Derek Chauvin cometeu um crime, exerceu seu direito de defesa num processo que durou 11 meses, foi condenado e preso. A conduta desse policial, para além de haver ceifado uma vida, o que, por si, já é uma catástrofe irremediável, causou desassossego social, insegurança sobre a própria capacidade de o Estado assegurar direitos fundamentais de seus cidadãos negros.

A resposta célere e eficiente do Poder Judiciário não pode, de fato, reparar o dano essencial causado pelo crime, mas é capaz, sim, de restabelecer a confiança que a sociedade deposita no Estado como garante de seus direitos, confiança essa que, aliás, representa a linha divisória e sutil que separa a selva e da civilização.

Um país que permite a impunidade de um homicídio pela chicana processual não tem nada a comemorar. Isso não é garantismo, não é sofisticação jurídica, não é sequer traço de civilidade. Antes pelo contrário, essa permissividade, que atende certamente a muitos interesses poderosos, empreste-se a ela o nome pomposo que se queira, nada mais é do que a leviandade que corrói o sentimento cívico e mina a confiança do cidadão no Estado. O problema é que malbaratar a confiabilidade do Poder Judiciário, ainda que sob o signo dos eufemismos e tecnicalidades jurídicas, é trilhar o caminho que pode nos conduzir perigosamente ao abismo da barbárie. Talvez, seja hora de levar o direito a sério, ou talvez não…