Uma PEC da vingança?
No momento em que o país pranteia seus 400 mil mortos, a imprensa perde-se no labirinto de insanidades produzidas diariamente pelo governo e a sociedade divide-se entre a apatia desconsolada e a cegueira política verde-amarela, urde-se, no Congresso Nacional, um golpe fatal, insidioso e dissimulado contra a sociedade. Com parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ), votado na data de ontem (04/05/2021), a PEC 005/2021 segue célere como uma flecha em busca do alvo certo.
Sem exageros retóricos, não tenho receio de afirmar que, se a proposta de emenda constitucional nº 005 de 2021 (PEC 005/2020) for aprovada, assistiremos ao ocaso do Ministério Público brasileiro, ao menos, daquele MP concebido pelo Constituinte de 1988 como instituição de Estado vocacionada a defender os interesses do povo, a democracia e os postulados republicanos, com autonomia e independência.
Não quero aborrecer o leitor com dados recentes da história árdua de sobrevivência do Ministério Público nos trinta anos de labuta democrática. Foram muitas as investidas contra sua independência institucional nessas três décadas. Mas não posso me furtar de lembrar da malfadada PEC 37. Embora essa proposta tenha tramitado por longos anos do Congresso Nacional, foi no primeiro semestre de 2013 que ela ganhou força no parlamento. Em junho daquele ano, o quadro mostrava-se sombrio. A possibilidade de aprovação dessa PEC parecia cada vez mais concreta. Aprovada, o resultado seria a proibição de investigações realizadas pelo Ministério Público.
Por sorte ou por sincronia transcendental, o fato é que, quando a amputação institucional parecia inevitável, a população brasileira tomou as ruas do país. A insatisfação, represada por anos de frustração com os desmandos de nossa representação política, eclodiu bem na reta final do processo de tramitação da PEC 37 na Câmara dos Deputados. Não foi difícil para a sociedade entender o que aquela proposta de emenda representava, quais as suas verdadeiras motivações e as consequências de sua aprovação para o país. O povo abraçou a causa, e a PEC 37 foi sepultada ainda em junho de 2013.
A situação hoje é um pouco mais complexa. Essa nova PEC é uma investida mais sutil e dissimulada contra o Ministério Público. Se não foi possível amputar um dos mais relevantes instrumentos de atuação institucional (a possibilidade de realizar investigações criminais), a ideia agora é controlar, por cima, a própria instituição, a partir do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, órgão encarregado, entre outras coisas, de punir membros do MP brasileiro por desvios funcionais.
E o que se pretende com essa nova PEC, que tramita com incomum rapidez pela burocracia parlamentar? A ideia é alterar a composição do CNMP, incluindo mais uma escolha do Congresso Nacional (art. 130-A da CF/88). Assim, em vez de duas cadeiras indicadas pelo parlamento, teríamos três. Muitos podem até dizer que essa indicação não seria completamente livre, pois a PEC exige que esse membro seja egresso do próprio Ministério Público. Ocorre que um nome oriundo da instituição, mas sacado da algibeira dos parlamentares de sempre, em absolutamente nada contribuiria para a preservação da independência e autonomia institucional. Temos casos vistosos disso nos dias que correm. Só não me peçam aqui para desenhar um exemplo. Não sou dado a subestimar a inteligência alheia.
A verdade é que sempre houve quinta-colunas em todas as partes e em todos os tempos. São aquelas pessoas que nada divisam em seus horizontes limitados, além do próprio interesse imediato. Nem o Cristo, em seu seleto grupo de apostolado, esteve livre da traição. Por isso, sair dos quadros do Ministério Público um novo membro para o CNMP, sem nenhuma espécie de filtro interno, é apenas uma forma de escamotear o objetivo real dessa mudança e torná-la mais vendável aos incautos.
Mas não é só essa a inovação trazida pela PEC 005/2021. Há ainda uma outra quebra no sistema de freios e contrapesos dentro do CNMP. Pelas regras atuais, embora o órgão seja composto por advogados, juízes e cidadãos indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, além de promotores e procuradores, o cargo de Corregedor Nacional só pode ser exercido por um membro do MP. A PEC 005 altera esse instrumento de preservação da autonomia e independência institucional, possibilitando que aquele cargo seja ocupado por qualquer um dos que compõem o Conselho.
Como eu já tinha adiantado, essa investida é mais complexa e dissimulada. Isso porque sua justificativa parece fazer algum sentido. Ora, permitir que um quadro extra Ministério Público exerça a função de Corregedor Nacional não seria uma medida contra o corporativismo? Isso não seria bom e desejável?
A ideia parece sedutora, mas não resiste a dois minutos de reflexão honesta. Proponho, assim, uma outra ordem de questões: por que essa mudança apenas para Conselho do Ministério Público e não para o Conselho Nacional de Justiça? Seriam os promotores mais corporativistas que os juízes? Por que agora? Essa demanda tem algum respaldo na sociedade? Para quais propósitos exatamente a composição atual do CNMP não tem serventia?
A verdade é que o CNMP tem sido rigoroso na punição de membros que se desviam de seus deveres éticos e constitucionais. Os números não mentem. Se compararmos a atuação do CNMP e do CNJ, veremos que o Conselho do Ministério Público julgou, entre 2005 e 2019, muito mais processos disciplinares do que o Conselho Nacional de Justiça, ultrapassando este último em 101%. Em termos de penalidades aplicadas, o CNMP superou o CNJ em 58%.
Há mais dados sobre isso, mas esses aí já são suficientes para jogar por terra a tese de que essa alteração constitucional tem por objetivo resolver problemas de impunidade e corporativismo no Ministério Público. Fosse isso verdade, com muito mais razão, a mesma alteração teria sido proposta para o CNJ, que, aliás, nasceu com o CNMP, para os mesmos propósitos, por meio da Emenda Constitucional 45.
Há pistas, porém, para explicar essa incoerência. O ministro Roberto Barroso, ao examinar a reação do sistema político contra o trabalho de combate à corrupção, cunhou uma frase lapidar: no Brasil, a corrupção não quer apenas impunidade, quer vingança. Talvez nesse insight iluminado do ministro esteja a chave para encontrarmos a razão de essa mudança chegar agora.
Sim, porque em um país com quase meio milhão de mortos pela Covid-19, imerso em uma pandemia fora de controle, acossado pelo empobrecimento de sua população, debatendo-se em uma crise econômica crônica e chefiado por um negacionista inebriado por sentimentos antidemocráticos, não se pode admitir que a alteração açodada na composição do CNMP seja uma prioridade social, que justifique o avanço aligeirado e leviano dessa PEC 005/2021 no parlamento, a Casa que deveria, antes de tudo, reverberar os anseios e necessidades do povo.
Mas se o ministro Barroso estiver certo, fechamos então uma linha coerente de raciocínio e alcançamos uma boa hipótese da real motivação política para essa PEC: a atual composição do CNMP não está servindo aos propósitos de vingança daqueles que foram investigados e processados criminalmente por corrupção. No entanto, isso deveria ser razão para celebrarmos o CNMP, e não para buscar mudanças, pois o Conselho não foi concebido – e nem poderia – para a finalidade espúria de vendetas.
O certo é que a PEC 005 não passa no teste de integridade da sua justificação declarada, é inoportuna e inadequada, mas, acima de tudo, é um golpe indigno contra uma instituição de Estado fundamental para o funcionamento de nossa democracia.
O Ministério Público, entre erros e acertos, ostenta saldo positivo na economia de nossa República, e assim é reconhecido pela sociedade. Não é dessa mudança que o Brasil precisa, senhores parlamentares.
O atual cenário político é, de fato, desalentador. O otimismo, no entanto, faz parte de minha natureza. Por isso, não acredito que a maioria do nosso parlamento vá embarcar nessa mal-ajambrada aventura política. Descemos bem fundo no poço de nossas iniquidades nos últimos tempos, é certo, mas não precisamos tombar mais um degrau em busca de lama.
O Ministério Público cometeu erros ao longo de sua história, não há negar. A instituição nunca se pretendeu uma entidade política pronta e acabada no desenho constitucional; ao contrário, o MP é fruto da refrega democrática, do processo de amadurecimento político do próprio país, às vezes doloroso e aparentemente errático. Rumos precisam ser reavaliados sempre; erros reparados.
A humildade deve servir ao Ministério Público e a todas as demais instituições como mola propulsara de um perene evoluir. Não devemos esquecer jamais a quem servimos: o povo. Por eles seremos sempre julgados e talvez até punidos, não tenho dúvida disso. Mas, ao prestarmos contas ao nosso Soberano, se castigo for a nossa paga, que ele nos alcance pelas razões certas: os erros; jamais pelos acertos. Parece justo assim.